01-11-2010 14:07

Escrever em língua de sinais?

 

Este artigo, que pretende discutir a aprendizagem de um sistema de escrita de língua de sinais específico, a ELiS (Escrita das Línguas de Sinais), tem muito a discutir antes de chegar ao seu foco, por exemplo: escrita de língua de sinais cabe na cultura surda? Escrever em língua de sinais cabe na educação bilíngue? Por que escrever em língua de sinais? Quem escreverá em língua de sinais? Para quem? E se depois de responder a estas perguntas aceitarmos que se deve escrever em LS, resta-nos ainda perguntar como fazê-lo? Após discutir estes questionamentos, apresentarei a estrutura básica da ELiS e demonstrarei seu funcionamento por meio de produções de alunos de cursos ELiS. Neste momento, comentarei também as reflexões metalinguísticas que a aprendizagem da ELiS levou estes alunos a realizarem, muitas delas consoantes com as teorias de alguns lingüistas sobre as línguas de sinais. Finalmente, retomarei todos estes pontos ao argumentar sobre a importância do uso e da legalização de uma modalidade escrita da Libras. A escrita de línguas de sinais, apesar de não ter ainda um uso socializado, uma

divulgação ampla entre as comunidades surdas, não é um artefato absolutamente estranho à sua cultura. Os surdos, apesar de terem uma cultura própria, de terem recursos específicos de interpretação do mundo, compartilham elementos com a cultura não-surda, como a escola e demais ambientes sociais, nos quais a escrita do português é utilizada. Na escola principalmente, seja ela especial, inclusiva ou bilíngue, a escrita é artefato de cultura precioso, super valorizado. Os surdos, aprendendo a escrever em língua portuguesa ou não, desenvolvem, no mínimo, o primeiro nível de letramento, que é o reconhecimento dos usos sociais da escrita. Assim, o elemento escrita, e seus usos, não é estranho aos surdos. O que ainda não se instalou em sua cultura é a vinculação deste recurso, a escrita, às línguas de sinais e a seus usos sociais. Os surdos usam a escrita em língua portuguesa, assim, ao introduzir a escrita da Libras, não introduziremos um instrumento totalmente novo, mas introduziremos, sim, uma nova prática social. Em que situações esta escrita será utilizada, com que intuito? Quem escreverá em Libras? Para quem? Entendemos que as mesmas pessoas que utilizam a Libras, surdos ou ouvintes, poderão utilizá-la em sua nova modalidade, a escrita. Esta modalidade poderá ser utilizada para registrar pensamentos originalmente elaborados em Libras, sejam eles políticos, científicos, poéticos, ou um simples auxílio à memória, como um lembrete de compromisso para daí a uma semana, ou para um uso assíncrono da linguagem, como um bilhete deixado de manhã na porta da geladeira para alguém que chegará de noite, além de todas as possibilidades de escrita disponibilizadas pelas tecnologias digitais. Enfim, por ser mais uma possibilidade de uso da Libras, o principal artefato da cultura surda brasileira, pode-se prever uma ampliação de alcance de sua cultura, o que poderá levar a um maior empoderamento e identidade dos membros desta comunidade surda. Desta forma, este novo artefato poderá trazer modificações nas relações dos surdos entre si e destes com os ouvintes. Resta-nos disponibilizá-lo aos surdos e aguardar sua resposta social de aceitação ou rejeição. No caso de aceitação, que já vem ocorrendo, uma proposta de introdução do ensino de um sistema de escrita da Libras na educação formal já está amparada por lei. Segundo o Art. 1º da lei 10.436 de 24 de abril de 2002, “é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras e outros recursos de expressão a ela associados”. A ELiS, um dos sistemas de escrita das línguas de sinais existentes, por ser um recurso de expressão associado à Libras, já é reconhecido como meio legal de comunicação e expressão. A proposta também está em conformidade com o parágrafo único do Art. 4º da mesma lei, segundo o qual “a Língua Brasileira de Sinais – Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa”, pois não se trata de exclusão do uso da língua portuguesa, mas de inclusão de possibilidades, ou seja, não se trata de eliminar o uso da modalidade escrita da língua portuguesa, mas de permitir o uso da modalidade escrita da Libras, que se pode interpretar reconhecida no Art. 1º desta mesma lei. No Decreto 5.626 de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei 10.436, o uso ou ensino da Libras é mencionado inúmeras vezes, como por exemplo no Capítulo II, Art.3º, “A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do distrito Federal e dos Municípios”. Também no Capítulo IV, Art. 14, §1º “Para garantir o atendimento educacional especializado e o acesso previsto no caput, as instituições federais de ensino devem: I – promover cursos de formação de professores para: a) O ensino e uso da Libras”.

No Capítulo VI, Art. 22, §1º, lê-se: “São denominadas escolas ou classes de educação bilíngue aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento do todo o processo educativo”.

Uma vez que a escrita da Libras é mais uma modalidade de realização da mesma Libras, é mais um recurso de expressão desta língua, em todos estes contextos da Lei 10.436 e

do Decreto 5.626 em que se menciona o ensino, a formação do professor ou o uso da Libras, inclui-se sua modalidade sinalizada e escrita. Em várias passagens, o Decreto 5.626 desmembra a modalidade oral da língua portuguesa da sua modalidade escrita, porém não faz o mesmo em relação à Libras. Talvez isto se explique porque a Libras, seja em sua modalidade sinalizada ou escrita, pode ser ensinada e usada cotidianamente por seu professor no decorrer das aulas, sem necessidade de um momento especial ou de um outro profissional para isto. Já a modalidade oral da língua portuguesa não deve ser ensinada aos surdos por seus professores, mas sim por fonoaudiólogos, como opção ao aluno surdo, e preferencialmente em turno contrário ao de sua escolarização, segundo o §3º do Art. 16, Capítulo IV deste mesmo Decreto. Talvez a explicação esteja no fato de a modalidade escrita da Libras, por ainda não estar socialmente consolidada, simplesmente não ter sido considerada explicitamente pelo referido Decreto. Dada uma explicação ou outra, o fato é que a possibilidade de escrita da Libras já existe e seu uso, passando a uma realidade social mais ampla, deve ser institucionalizado pela escola, pois além de pensarmos na legalidade do ensino de uma escrita da Libras, devemos considerar que uma proposta de educação para surdos que se diz bilíngue deve abranger todas as possibilidades de uso das duas línguas envolvidas, do contrário, ficará uma proposta claudicante. Estando o uso de uma escrita da Libras legalmente reconhecido, a questão que se coloca é: como escrever em Libras? Mais de um sistema de escrita de línguas de sinais já foi inventado. A primeira escrita de sinais de que se tem registro é a do francês Ambroise Bébian, criada no início do século XIX. Outra proposta de escrita só veio a surgir bem depois, com o linguista americano Stokoe, em 1965. O sistema mais divulgado até o presente momento é o Sign Writing, sistema americano criado por Valérie Sutton em 1981, a partir de um esforço inicial de registrar movimentos da dança. Outro sistema da mesma época é o alemão HamNoSys. Além destes, existe a ELiS, sistema brasileiro, criado em 1997 por esta autora e reformulado para sua versão atual em 2008. A próxima seção trará uma breve explicação do funcionamento deste sistema. TEXTO D  *

Mariângela ESTELITA

Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás, Doutora em Linguística pela Universidade

Federal de Santa Catarina e criadora da ELiS, sistema de Escrita das Línguas de Sinais.

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